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Sebastião da Gama evocado em 13 de Abril (II)


[Na evocação promovida para evocar Sebastião da Gama, realizada pelo Museu Sebastião da Gama na tarde de 13 de Abril, uma das intervenientes foi a sua aluna Acilda Fragoso, estremocense, de quem aqui se regista o testemunho que na altura apresentou.]

Acilda Fragoso no momento do seu testemunho, acompanhada por José Catalão (Câmara Municipal de Setúbal)
e por Maria Barroso (colega de Sebastião da Gama na Faculdade de Letras de Lisboa)

Sebastião da Gama foi uma lufada de dinamismo e alegria que quebrou a pasmaceira de Estremoz e a monotonia das nossas aulas. A maneira apaixonada como falava e o seu jeito expressivo e sincero incutiam-nos o gosto de o ouvir e aprender. Creio que o nosso professor estava-se nas tintas para os programas ou então chegava até eles por meios muito próprios, tentando sempre primeiro despertar-nos o interesse lendo um excerto de algum escritor ou um poema.
Não me esqueço do dia em que levou para a aula Os Simples do Guerra Junqueiro e nos Ieu a primeira parte do “Prelúdio — A Caminho". Ficámos todos siderados, presos na sua maneira de dizer, na maneira como Ieu toda a descrição da caminhada daquele "Senhor tão novo, de olhos cor de Esperança"... Aquele jovem era exactamente igual e como cada um de nós. Também nós queríamos dar a "volta mundo...", "prender monstros, combater serpentes..." Todos sonhávamos contribuir para um Mundo Melhor...
"Mundo negro", que o nosso professor conhecia e que sabia que só alguém, como ele, que tivesse ganho "da vida um pedaço de luz”, o poderia fazer "claro e luminoso e belo" como ele o via desde a sua "ilha”.
A leitura de "De volta” (a segunda parte do “Prelúdio”) sensibilizou-nos muito e aquela aula marcou-nos para sempre... Foi bem mais tarde que compreendemos inteiramente a lição que o professor nos quis dar...
Acreditámos que se ele tivesse escrito aquela segunda parte, teria sido bem menos triste do que aquela que o Guerra Junqueiro escreveu.
Mas a vida de Sebastião da Gama infelizmente não chegou ao segundo capítulo, acabou abruptamente em "PELO SONHO É QUE VAMOS".
Temos recordações da vida do nosso professor nesta altura em que ele vivia transbordando poesia e se passeava pelas ruas de Estremoz, cumprimentando todos, fazendo muitas vezes uma observação agradável, quer fossem a adultos ou a crianças que encontrava no seu caminho, e ninguém jamais o esquecia, mesmo os que só se tivessem cruzado com ele uma única vez.
Fazia amizades rapidamente e vinha-nos contar quem mais tinha conhecido, falando sempre muito alto, gritando mesmo por nós se nos via ao longe... Toda a rua ouvia o que nos tinha para contar. Depressa conquistou a amizade dos poetas da nossa terra. Tudo queria partilhar connosco e os seus alunos eram seus amigos também.
O “depois das aulas” era tão agradável… Era outra a aula. Por vezes, lia-nos uma das poesias que constam em Pelo sonho é que vamos.
Um dia, estava eu numa aula de Lavores e Bordados, e batem à porta: era o Dr. Sebastião, que, pedindo licença, foi entrando. A nossa Mestra, a Sr.a Da Joana Alves, foi logo ao seu encontro. Ele disse-lhe que vinha pedir-lhe para me ler um poema e que ela, se quisesse, também podia ouvir: era "Janelas de Estremoz"! Isto era impensável acontecer com outro professor que não fosse o Sebastião da Gama!... Ambas nos sentimos felizes, felizes por termos partilhado aquele momento com o Professor-Poeta, que nos leu, como só ele sabia, um poema talvez acabadinho de fazer.
Também a "Poesia depois da chuva” nos foi dita ainda bem fresquinha: tinha havido uma grande trovoada e chovido torrencialmente. O Poeta estava em frente ao Rossio, no “Águias d'Ouro” (o Rossio de Estremoz é maior que o de Lisboa, sem nada no meio e ainda não era calcetado, era de terra ou areia batida e ficava alagado, cheio de poças e regos de água, que pareciam espelhos reflectindo o Sol que espreitava depois da tempestade). A Maria Inácia passou cruzando a praça (que atravessávamos na diagonal para encurtar caminho). Era irmã do Armando Alves, que foi frequentar Belas Alves por sugestão de Sebastião da Gama, hoje reconhecido artista plástico). Talvez ela não saiba que é "a flor dos olhos negros" deste poema.
Era no corredor junto à janela, que fazia recanto, que um grupinho de três ou quatro ficava com ele à conversa e ouvia os seus poemas. Estes momentos eram únicos. Também ali nos leu "Nunca o amor foi breve”, inspirado no nascimento dum filho duma amiga, e "Anunciação”, quando pensou que o desejo de terem um filho se ia concretizar. Trazia consigo papelinhos com os últimos poemas para os ler aos amigos e dizia-nos o porquê de naquele momento ter surgido a poesia. Penso que o nosso Poeta-Professor gostava de ver o efeito que nos transmitia com a leitura dos seus poemas. Às vezes, dava-me os papelinhos, porque lhos pedia. Mas, lidos por ele, os poemas tinham outro sabor.
No dia em que fiz 17 anos, tal como muitas vezes acontecia, porque morava perto da escola, o nosso grupinho veio deixar-me à porta de casa. Já nos estávamos a despedir quando me entregou a minha prenda de anos: era um poema, vinha dentro duma capa feita pelo António Banha, um aluno que gostava de desenhar, com desenhos coloridos alusivos ao Natal e em letras muito grandes "Somos assim aos 17". Abri. Estava manuscrito e no topo dizia: “À Acilda, a 9 de Março em sinal de Amizade”. Não li mais nada, pedi-lhe para ser ele a ler. "Olha para ela! Ofereço-lhe um poema e ainda quer que lho leia!" e leu. Assinava “Sebastião Artur”. Mesmo que eu tivesse dúvidas da sua amizade, que não as tinha, aquele poema e aquela assinatura diziam tudo. Depois, entregou-me uma carta da sua Joana Luísa.
Durante toda a minha vida, no dia dos meus anos, não tive prendas que me emocionassem mais...
Podia ficar por aqui, mas tenho vontade de partilhar mais umas recordações.
Um dia, no jardim da nossa terra, passeávamos, ouvindo o professor, quando ele, de repente, parou, foi até junto dum canteiro, desfolhou uma rosa seca e disse-nos: "Desculpem, não posso ver rosas secas!" e continuou a conversa que tinha interrompido.
Eu era má em ortografia, chegava a escrever num exercício a mesma palavra duas vezes de maneira diferente e sempre errada. Numa das suas ausências maiores por motivos de saúde, trocámos correspondência. Em resposta a uma carta minha com alguns erros crassos, dizia: "...Olhe que eu com os que não se importam com a ortografia importo-me muito com a ortografia. Já vos falei, é certo, de uma deliciosa aluna minha que escreve erros enternecedores. Mas fora dos momentos líricos e dos erros adoráveis em certas criaturinhas... há o erro que é uma deformação e defeito físico da palavra. Palavra muito errada dói-me como pode um coxo doer-me, ou um vesgo ou um corcunda, entende?" E continuava a carta utilizando na sua prosa as mesmas palavras que eu tinha errado e sublinhando com dois riscos a sílaba errada. Nunca o ouvi dar um sermão a ninguém. O seu método resultava sempre.
Havia uma rapariga no Ciclo Preparatório que era muitíssimo gorda e os miúdos não perdiam oportunidade para a ridicularizarem. O professor apercebeu-se da situação e começou a falar dela, enaltecendo-lhe as qualidades, como era aplicada e sensível, etc. Foi o bastante para que acabassem aquelas brincadeiras de mau gosto.
Sempre que tinha que se ausentar para ir ao médico, pedia-nos para rezarmos por ele, para que o médico o deixasse casar. Só por estas ausências por motivos de saúde e por este pedido sabíamos que a doença teria alguma gravidade, porque a sua boa disposição a sua alegria o seu bem-estar com a vida não nos deixava antever um tal e tão rápido desfecho.
"Não morri porque cantei”. Não morreu porque amou, amou a vida, as pessoas, a natureza. Amava tão profundamente com tanta intensidade, que o seu amor se transformava em pura poesia que cantava nos seus poemas e espalhava ao seu redor. Pelos seus olhos tudo se transformava e era pelos seus olhos que nós, que nem nos tínhamos apercebido de que a poesia estava ali, a víamos também! E o Sebastião-Professor, o Sebastião-Poeta ficava feliz por nos ver maravilhados.
Para finalizar vou ler-vos o que uma aluna e nossa amiga, do Sr. Dr. Sebastião e minha, escreveu no dia da sua morte. Ela que me perdoe lá onde possa estar, porque não me deixou que desse a ler a ninguém o que escreveu, era uma introvertida mas de uma grande sensibilidade.
"...E o céu vibrou de alegria, os anjos cantam!... Em francês, como ele gostava… São Pedro abre os braços para receber a alma pura do poeta como só a sua. Música terna, suavíssima como a sua voz quando nos dizia versos, se ouve… E o céu vibrou de alegria!!!”

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