Fac-simile da 1ª página do manuscrito (11 de Janeiro de 1949) e capa da 1ª edição do Diário (1958)
Em 11 de Janeiro de 1949, Sebastião da Gama tinha 24 anos, a licenciatura, a experiência lectiva de professor provisório na Escola João Vaz, vários textos publicados, entre os quais dois livros, e iniciava o estágio de professor na Escola Veiga Beirão, em Lisboa, desse dia datando a primeira página do seu Diário (apenas publicado em 1958), a registar as observações do metodólogo, Virgílio Couto: “Para começar, o metodólogo falou connosco durante uma hora. De acordo com o que disse, vão ser as aulas de Português o que eu gosto que elas sejam: um pretexto para estar a conviver com os rapazes, alegremente e sinceramente. E, dentro dessa convivência, como quem brinca ou como quem se lembra de uma coisa que sabe e vem a propósito, ir ensinando. Depois, esta nota importantíssima: lembrar-se a gente de que deve aceitar os rapazes como rapazes; deixá-los ser: porque até o barulho é uma coisa agradável, quando é feito de boa-fé.”
Este texto iniciador do Diário apresenta-se como uma declaração de intenções, como um programa próprio, como um perfil do que deve ser o professor, como deveria ser ele, Sebastião da Gama, enquanto professor, haja em vista o cruzamento das intenções do professor orientador do estágio e da visão que o novo professor perfilhava quanto à sua função – “vão ser as aulas de Português o que eu gosto que elas sejam”.
Sebastião da Gama tinha bem a noção da razão de ser de um diário. Mas torna-se evidente que este professor redigia um diário para ser o seu espaço e tempo de reflexão sobre a sua prática pedagógica durante o tempo de estágio, sobretudo numa área tão sensível como era a do ensino do Português, misto entre o estudo do funcionamento da língua e o conhecimento da literatura e da cultura portuguesas, não omitindo algumas confidências que bem integrariam uma espécie de diário “íntimo”.
Um dos aspectos mais interessantes neste Diário é a forma como é dada voz aos alunos, não por aquilo que terá acontecido nas aulas, mas pela maneira como essa entrada das vozes dos outros – os alunos – se exerce e se vê no Diário, na vida do “eu” que se escreve também com os outros: mencionando os seus nomes próprios (com absoluta recusa do tratamento dos alunos pelo número de ordem e dando a ideia da constância da presença do outro no espaço e tempo do diário), reproduzindo em discurso indirecto, aludindo a conversas, abrindo o espaço para o discurso directo, registando os textos escritos dos alunos (de cartas ou de composições). A importância desta entrada dos alunos no Diário é tanto mais interessante quanto ela não se deve a critérios estéticos, antes tem lugar porque o diarista a valoriza, princípio que está de acordo com a necessária capacidade de aceitação do outro – dos “rapazes” – expressa no início do diário, no registo de 11 de Janeiro de 1949.
As regras para essa entrada do outro na aula, na vida e no Diário são logo estabelecidas no registo de 12 de Janeiro de 1949, ao relatar que pedira lealdade aos alunos, princípio a exigir reversibilidade. Ao mencionar esse acordo, Sebastião da Gama está também a fazer uma profissão de fé na lealdade e a estabelecer os seus próprios limites para a escrita da vida, do diário. Mas o seu testemunho perante os alunos vai mais longe, insistindo no direito à palavra, à voz – “Sei coisas que vocês não sabem, do mesmo modo que vocês sabem coisas que eu não sei ou já me esqueci. (…) A todos cabe o direito de falar, desde que fale um de cada vez e não corte a palavra ao que está com ela.”
Assim estabelecidos, entendidos e aceites os princípios, são frequentes as vezes em que os rapazes têm a palavra neste Diário pelos mais diversos motivos, muitas vezes acontecendo que a voz do professor se mistura com a voz dos jovens, num trajecto em que o mais importante deste diário parece ser, como referiu Clara Rocha, a “comunhão do professor com os alunos”, através da palavra.
O leitor pode ainda assistir à consistência da cultura que este jovem professor detinha. Pelo Diário perpassam os nomes e as referências às obras de escritores portugueses e estrangeiros, seus contemporâneos uns (e até alguns do seu círculo de amizades) e clássicos outros, a rondar as seis dezenas de indicações, sempre chamados para ilustração de situações de aula ou para aprofundamento da preparação das lições ou da reflexão sobre as mesmas, citações que não constam apenas da indicação dos nomes, mas que demonstram um conhecimento das obras a que estes autores estão ligados.
O estudo do Diário de Sebastião da Gama como repositório pedagógico de novas práticas no domínio da educação escolar foi já encetado por autores vários, considerando a sua modernidade, ideia para que contribuíram práticas como a não utilização da tinta vermelha para correcção, a capacidade de improviso na realização de cada aula, as aulas ao ar livre, a utilização de recursos inovadores para a época (cartazes, festas escolares, biblioteca de turma, dramatização de textos dos alunos, reformulação do estudo e do ensino da gramática, consulta de apontamentos durante os exercícios, interacção professor-aluno, redacção dos sumários a cargo dos alunos, etc.). Outra linha de pensamento é a existência de uma pedagogia da felicidade no Diário de Sebastião da Gama, onde se fundem o educador e o poeta, ambos trilhando a rota da sensibilidade para que os alunos encontrassem a felicidade.
E o Diário de Sebastião da Gama aí está, acentuando os fragmentos do registo da vida do professor e dos alunos na luta contra o silêncio, contra o acanhamento imposto, em favor da liberdade e da criatividade, na conquista do direito aos afectos, do direito à expressão, do direito à palavra, do direito à voz, do direito à poesia da vida. - JRR
“vão ser as aulas de Português o que eu gosto que elas sejam”. Como eu gosto desta frase e do que se encontra subjacente a ela!
ResponderEliminarPassados 60 anos, este é um texto cheio de actualidade e que deveria ser seguido pelos docentes e lido pelos alunos. Ensinar com amor e ver com olhos de ver os alunos pelo que são, onde o respeito mútuo impera...será afinal uma quimera, um mito? De modo algum!