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Apresentação do cd "Sebastião da Gama - Meu caminho é por mim fora" - Intervenção do Presidente da ACSG

Minhas Senhoras e Meus Senhores,
Permitam-me que os convide a lembrarem-se de José Régio, quando, no poema “Cântico Negro”, inserido num livro publicado em 1925, escrevia “Só vou por onde / Me levam meus próprios passos…” e, mais adiante, completava a ideia, afirmando que “Se vim ao mundo, foi / (…) / [para] Desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!”
Se aqui chamo a palavra de José Régio, é por saber que essa foi uma das fontes de saber e de poesia de Sebastião da Gama e por achar que este verso “Meu caminho é por mim fora”, que dá título ao cd que agora se apresenta e que foi pedido emprestado ao poema “Itinerário”, se cruza algures com esses outros versos de Régio, no assumir de um percurso poético, absolutamente indissociável de um trajecto de vida e de intervenção cultural e humana.
Reunimos neste cd 26 textos do “Poeta da Arrábida” que é Sebastião da Gama, entre poesia e prosa, sendo que todos eles constituem uma janela aberta para o mundo do próprio poeta, do professor e do homem que Sebastião da Gama foi, uma quase trilogia – ou trindade, se preferirem – em que cada um dos painéis é indissociável dos outros, porque as aulas transpiravam poesia, a vida corria sobre poemas e o poeta construía versos sobre o que a vida e o mundo lhe ensinavam.
São 26 textos numa sequência de descoberta de mensagem. O primeiro é um excerto dessa obra fundamental para a educação que se chama Diário (traduzido, há cerca de um mês e meio em Itália e, pasmemo-nos com o nosso fraco hábito de só imitarmos os outros!, com essa primeira edição traduzida já esgotada), obra que regista um ano e tal de prática docente, humana e culta, reflectindo o professor neste texto sobre o que disse aos alunos acerca da poesia e de como ela é condição para a sinceridade.
Depois, vêm poemas, ordenados cronologicamente, escritos entre 1946 e 1951, por onde passam as temáticas diversas que povoam a escrita de Sebastião da Gama – a Natureza, a Arrábida, o Poeta, a alegria e a força de viver, a religiosidade, a infância, a mãe, a tradição literária portuguesa, o amor, a contemplação e a descoberta do mundo, a liberdade. Por estes textos vibra também uma quase geografia de Sebastião da Gama, sobreposta aos lugares por onde passou e de que se apropriou inserindo-os na sua obra – a Arrábida, naturalmente, mas também Lisboa e o Tejo, Viana do Castelo, Estremoz. Ressaltam ainda alguns dos modelos que ajudaram a decidir uma arte poética, como a lírica medieval galego-portuguesa, Frei Agostinho da Cruz, Bernardim Ribeiro, Camões, ecos de Fernando Pessoa e ainda a valorização dos seus contemporâneos, como acontece no poema em que celebra Carlos Queirós.
O texto que fecha o cd é uma porta aberta, um hino à liberdade, apesar de ser escrito em prosa. “Encarcerar a asa”, assim ficou intitulado. Foi o último texto que Sebastião da Gama escreveu, em 25 de Janeiro de 1952, treze dias antes de se despedir da vida, e faz justiça àquilo que sempre defendeu – aprender com a simplicidade da vida e, desta vez, o pretexto foi um pintassilgo dentro de uma gaiola, que deu para falar da liberdade, da alegria e graça de estar vivo, do que é educar, da fraternidade, de Estremoz (onde vivia, na altura), do saber. É um texto que adquire ainda mais valor por ter sido o último produzido e por conter um testemunho, talvez um testamento, de valores fundamentais.
E como surgiu este cd? Um dia, há mais ou menos um ano e dois meses, recebi um mail do Rui Serodio, lamentando-se de que não tinha ainda composto nada para acompanhar a poesia de Sebastião da Gama, acrescentando que queria ter essa marca na sua vida de compositor. E logo ali esboçava os custos e a forma de avançar com um cd no que à música e a algumas eventuais colaborações dizia respeito. Esta ideia, surgida assim, depois de uma sessão sobre o poeta que no dia anterior tinha promovido no Clube Setubalense, bateu fundo porque vinha ao encontro de uma intenção que tínhamos e que era concordante com este desabafo-proposta do Rui. A congeminação para a construção do cd começou de imediato e, um ano passado, aqui o estamos a apresentar.
Fica-nos a satisfação de estarmos contentes com esta obra, em grande parte devida ao voluntariado de uma diversidade de colaboradores bem interessante. Alinhado e preparado este trabalho, apresentámos convite a 24 eventuais parceiros, entre instituições e empresas, para se juntarem a nós na edição desta obra. Alguns dos contactados responderam, elogiando a ideia, mas argumentando impossibilidades várias para entrarem no projecto. Alguns outros, poucos, nem sequer nos responderam, e o mais grave é que a falta de resposta (sublinho: a falta de resposta) partiu de empresas e instituições com responsabilidades na nossa região, na paisagem e na identidade da nossa região. É para esses que vai o nosso primeiro agradecimento, não por ironia, mas porque fizeram sentir que quem nos respondeu, sendo parceiro ou não, é, de facto, ainda mais importante.
Alinharam neste projecto, através da aquisição de cd’s, instituições como: Banco BPI (cujo presidente, o Dr. Artur Santos Silva, reconheceu o valor deste trabalho do ponto de vista cultural e identitário), a Fundação Buehler-Brockhaus (que reconheceu a importância deste projecto e decidiu proceder à oferta deste cd aos centros de recursos das escolas do concelho de Setúbal), a Fundação Calouste Gulbenkian (que vai distribuir este cd pelas várias bibliotecas do país com as quais tem protocolo), a Fundação Oriente (desde início valorizando a dimensão da Arrábida), o Grupo Nabeiro – Delta Cafés (cultivando uma prática enternecedora de apoio a actividades culturais), Ramos & Varela (o primeiro apoiante, quando ainda nem se vislumbrava a forma do cd) e a Câmara Municipal de Setúbal e as duas Juntas de Freguesia de Azeitão (S. Simão e S. Lourenço), três instituições que, desde sempre, se têm deixado envolver pelas propostas que apresentamos e que, justo é dizê-lo, muito têm pugnado pela imagem e pela memória de Sebastião da Gama. Para estes nove parceiros, que confiaram no trabalho a apresentar e que nos incentivaram a que ele fosse um produto com qualidade, aqui fica o nosso agradecimento.
As pessoas foram a mola determinante desta obra e alguns nomes temos de assinalar: menciono em primeiro lugar os de Joana Luísa da Gama e de Aurora Gama, uma e outra interessadas na divulgação da mensagem da obra do seu familiar, uma e outra autorizando a Associação a usar os textos e as imagens do poeta, uma e outra acompanhando as dificuldades e as alegrias do que foi pôr este projecto no caminho. Depois, tenho de referir o nome de Rui Serodio, pianista e compositor, um dos pais desta ideia, autor das músicas que acompanham os poemas aqui ditos, que várias vezes me referiu ser este um projecto bem importante na sua vida de músico e de cidadão e que o levou a apreciar de forma mais intensa a musicalidade da poesia de Sebastião da Gama (obrigado, Rui!); o de Jorge Calheiros, que procedeu à montagem e elaborou um grafismo, a meu ver, digno de registo e de louvor, e que, de editor, passou a ser colaborador porque se envolveu de tal forma no projecto que já dizia os poemas à maneira de cada um dos artistas e porque assumiu que este projecto era para ele também uma questão de cidadania (obrigado, Jorge!); o de David Neutel, que pôs o seu saber ao serviço da gravação das vozes; os de Célia David, Fernando Guerreiro, José Nobre e Maria Clementina, actores bem conhecidos e amados nesta terra, que, desde início, se prontificaram a colaborar, sem condições, partilhando dizeres, acreditando nesta obra, dando voz e corpo aos textos do Poeta da Arrábida, ao mesmo tempo que tinham de respeitar as suas agendas de geografias díspares e de trabalhos desencontrados (obrigado, Célia, Fernando, Zé e Clementina!); o da Dra. Maria Barroso, pela pronta disponibilidade e aceitação e pela partilha das lembranças de Sebastião da Gama, sua contemporânea e amiga, e também pelo carinho que pôs no dizer, num acariciar dos versos surpreendente (obrigado, Dra. Maria Barroso!); o do Prof. Doutor Marcelo Rebelo de Sousa, que sempre se tem mostrado disponível para lembrar o exemplo e a obra de Sebastião da Gama, personalidade de apoios diversos à nossa Associação, e que traçou curtas mas pertinentes palavras para abertura deste cd (impossibilitado de aqui estar devido a outros compromissos, fica-lhe também o nosso obrigado, apesar da sua ausência).
Caros Amigos, este é um projecto que, para a Associação Cultural Sebastião da Gama, visa a divulgação, a memória futura (deixando a criatividade da voz e da música para intervenientes que estão ligados a Setúbal e à Arrábida ou que foram próximos de Sebastião da Gama) e a adaptação ao mundo multimédia (que, hoje, ajuda a valorizar o que de bom existe) da obra de um poeta, que, tendo partido aos 27 anos, conseguiu marcar a poesia portuguesa do século XX e legou um testemunho do acto educativo que só não é de leitura obrigatória em Portugal porque, teimosamente, continuamos a preferir a distracção com o que é importado, ainda que às vezes seja superficial.
A memória faz-se com as chamadas de atenção e também com a leitura da obra. Oxalá gostem!
Muito obrigado.

Comentários

  1. «Meu caminho é por mim fora» não é apenas um simples CD… É de facto um livro para ouvir.
    Para ouvir Sebastião da Gama… por ele fora!
    E assim como o Poeta diz «É preciso saber olhar…», nós diremos: «É preciso saber ouvir…»
    A pequena antologia de textos está muito bem ilustrada (parabéns ao Jorge Calheiros pela concepção gráfica!...)e contem fotografias interessantíssimas do Poeta. Assim «o Poeta fica» e as suas palavras permanecem…
    Parabéns ao João Reis Ribeiro pelo carinho e entusiasmo que colocou em mais este projecto «sonhado» da ACSG.
    «Pelo sonho é que vamos» (como escreveu o Poeta!)

    Maria do Céu Couto

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  2. fechei os olhos e ouvi as palavras que escreveste, ditas por várias vozes, sempre belas. E recordei o teu caminho que por ti não foi, a tua serra-mãe que "ao crepúsculo é catedral", a história simples do teu amor no teu país que continua desgraçado, mas vieste poesia e tudo o mais ficou certo e o sonho reganhou asas dentro de mim.
    Parabéns à ACSG, gratidão a todos os que tornaram o projecto «Meu Caminho é por mim fora».
    realidade.

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  3. E preciso, é urgente dar a conhecer este magnífico trabalho.

    Parabéns a todos os que o sonharam, projectaram e realizaram.

    Parabéns à ACSG.

    Anita Vilar

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  4. Tive o prazer de assistir a toda a sessão e posso dizer que estão todos de parabéns por este magnífico trabalho. Já "devorei" o CD. Gostei da selecção de poemas, das faixas musicais do nosso brilhante pianista Rui Serôdio, dos excelentes declamadores, do grafismo, das fotos, etc. Penso que o efeito final suplantou todas as expectativas. Sebastião da Gama merece isso e muito mais. Continuem com essa energia!
    Felicidades
    Ivone Vilares

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  5. Agora com mais tempo, venho dar sinceros parabens pelo acontecimento de ontem. Gostei da "casa cheia", mas tive que sair logo que acabou e não falei com ninguém. Depois de ouvir o CD a 1ª vez (muitas outras se seguirão), venho dar a minha fraca opinião: Gosto muito mais do que ouço no CD do que ouvi na sessão (…) porque é noutras condições - silêncio, sem nada que distraia. (…) No CD a música apenas aparece com muita subtileza, não se sobrepõe, como deve ser. (…) O resultado geral é altamente positivo. É pena que a produção dum trabalho destes seja tão cara e só se consiga à custa de boas vontades, além, como é óbvio, de competência. (…) Gostaria de ver neste CD o primeiro de vários. Vamos ver se daqui a algum tempo se pode fazer outro... Apesar de não perceber nada de artes gráficas, gostei imenso do trabalho: bonito, discreto, contendo tudo o que deve.
    Maria Cândida Borges

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