Recentemente reeditado pela mão do professor João Reis Ribeiro, que assina uma notável introdução, Diário (Editorial Presença), de Sebastião da Gama, dele recolhemos o exemplo de um verdadeiro professor.
Com efeito, um conjunto de dez características estatui este diário de um estagiário das disciplinas de Português e Francês no modelo (ideal) de um perfeito professor. Neste sentido, o genuíno professor do ensino básico e secundário seria:
1. – aquele que lecciona contra o racionalismo pedagógico, o academicismo, o eruditismo, a retórica balofa, o estilo pedante e pomposo, a orientação pedagógica livresca e moralista, a total vinculação ao estudo do passado literário sem compromissos estéticos actuais;
2. – aquele que, como pulsão de desejo pedagógico-estético, munido de suficientes portas e janelas por onde corre o ar fresco da criação nova, interpenetra na sala de aula de conhecimento e criação;
3. – aquele que dá aulas contra a cultura como efeito de propaganda e contra a cultura como forma de imbecilização de massas;
4. – aquele que não trata o aluno nem como idiota nem como génio, e celebra a multiplicidade de personalidades em desabono da unidade;
5. – aquele que na sua aula foge de perspectivas culturais mecânicas, abstractas, descarnadas, presas a cadáveres teoréticos, ausentes dos nervos e do sangue da vida, isto é, das emoções e afectos humanos que, na sua diversidade, compõem o coração da literatura, da cultura e da história;
6. – aquele que, na sala de aula, aspira a promover o diálogo, não a tagarelice; o debate, não a cristalização dos argumentos numa fortaleza ideológica, isto é, ouve o aluno;
7. – aquele que, na sala de aula, escapa ao argumento repetido, à teoria mil vezes explicada ou mil vezes aplicada, à terminologia mil vezes repisada;
8. – aquele que, na sala de aula, desmascara a cultura “descartável”, confeccionada para ser vendida, consumida e deitada fora como um par de sapatos velhos, e desconstrói a cultura de massas que não possui ideias a alimentá-la, ideias originais, fortes, sólidas, que possam iluminar a realidade e perturbem a vida do aluno – uma aula, como um romance, um poema, um ensaio, deve ambicionar a mudar a vida (ou parte da vida) do leitor, abrindo-lhe um outro plano no horizonte da sua vida;
9. – aquele que, na sala de aula, reclama uma exigência de rigor ético cujo objectivo último residirá na maior amplidão da lucidez do aluno, isto é, da capacidade crítica da razão do aluno;
10. – Aquele que faz da sua aula um espaço de transgressão estética, de desmando cultural, de provocação analítica.
O Diário de Sebastião da Gama prova que as suas aulas não se destinavam apenas à formação ou consolidação da personalidade do aluno, mas também à concessão de liberdade. Para Sebastião da Gama, educar era amar e conceder liberdade e respeitar a liberdade alheia, mormente a do aluno. A profissão de professor e a vocação maior da escola residiriam, assim, em última análise, segundo o autor, na educação da liberdade do aluno e na construção de um espírito fraterno entre toda a comunidade escolar – e, portanto, na possibilidade do aluno errar como de acertar, de falhar como de conseguir, no sentido de que cada aluno, quando adulto, se tornasse um cidadão eticamente exemplar.
Dar aulas, para Sebastião da Gama, significava igualmente, tendo em conta a mentalidade que anima a pedagogia contemporânea, enformada pela atmosfera científica do século XX, que a escola devia visar a criação de um homem socialmente plural, crente no valor da técnica e da tecnologia como modo de solucionamento das questões sociais, mas também de um cidadão humanista, crente no valor da lei, da moral e, sobretudo, da poesia, de uma filosofia humanística que harmonizasse os homens entre si.
Para Sebastião da Gama dar aulas significava que o professor e a escola se constituíam como os instrumentos que a sociedade utiliza para elevar a criança ao nível formativo do adulto, tendo em conta ser o aluno, ele próprio, o destinatário privilegiado de toda a educação, mas não o aluno abstracto, modelo perfeito do aluno sábio, antes o aluno tal como se apresenta concreta e existencialmente, não raro carregado de preconceitos sociais transmitido pelo meios de comunicação de massas. Neste sentido, mais do que científicas, as suas aulas eram humanísticas e existenciais.
No Diário constatamos a existência de uma permanente actualização metodológica e instrumental da escola e dos professores. Com efeito, a antiga pedagogia, centrada no professor, nada resolve hoje em dia quando este, ainda que adulto e mais sábio, já não constitui modelo e exemplo para alunos púberes e adolescentes. Sob a capa de um rigorismo académico, a acção destes professores pode afastar os alunos dos conteúdos da sua disciplina, quando não se torna ela própria desadequada face à nova estrutura familiar e à nova cultura da empresa, mais descentralizadas e multipolares. Sebastião da Gama toma directo partido pela “nova” pedagogia, que centra a aula, não exclusivamente no professor, mas tanto no aluno quanto nos materiais pedagógicos – por isso promove a semana da Poesia e toma inúmeras iniciativas no interior da sala de aula. Teve razão antes do tempo – de facto, a Pedagogia hoje chegou a esta conclusão, o professor deve centrar a aula nos materiais ou suportes do acto de ensinar, adequando à estrutura cognitiva e existencial do aluno.
Assim, em conclusão, o conceito de educação em Sebastião da Gama é, em suma, para além da formação de uma personalidade, a concessão de liberdade. Educar é conceder liberdade, respeitar a liberdade alheia, mormente a do aluno, por muito que hoje essa concessão nos pareça utópica ou, face aos constrangimentos sociais, mesmo perversa. A profissão de professor é, assim, entendida como aquela que educa disponibilizando liberdade – e, portanto, a possibilidade de errar como de acertar, de falhar como de conseguir, de ser eticamente exemplar como de ser maleficamente exemplar. Santo ou cafajeste, cada um faz-se por si, respondendo à sua espontaneidade interior, que, sobre as circunstâncias sociais, favorecendo-as ou contraditando-as, é a sua liberdade.
Deste modo, a mentalidade que animava a Pedagogia oficial do tempo de Sebastião da Gama, enformada pela atmosfera científica do século XIX, visa a criação de um homem social uniformizado, crente no absoluto valor da técnica e da tecnologia como modo de solucionamento das questões sociais, um homem abstracto, regulado por leis jurídicas universais. Porém, Sebastião da Gama, no seu Diário, não nos fala desse homem uniformizado e universalizado, de que o professor deveria exemplo e instrumentos social.
Miguel Real
10 de Outubro de 2011.
[Comunicação apresentada no encontro "A Educação a partir do Diário de Sebastião da Gama", que aconteceu na Biblioteca Municipal de Palmela, em 28 de Outubro, inserido no programa de recepção à comunidade educativa, por iniciativa da Câmara Municipal de Palmela.]
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