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"Estala de saudade o coração", o livro de Joana Luísa da Gama lido por Daniel Nobre Mendes

Ao reler o livro de memórias desta nonagenária velhinha – não  apresento desculpas pela redundância pois que a vibração é tanta que me sinto no dever de ir na crista da onda de um rebate aflito de sinos dentro de mim! –, fico emudecido, embevecido pela e com a ternura cristalina com que Joana Luísa da Gama constrói o seu livro, uma obra bem organizada pela sequencia espácio-temporal dos relatos que a preenchem e enriquecem e pela simplicidade da linguagem, uma terminologia directa, escorreita, onde nunca faltam aqueles grandes assomos de feminil doçura ou de ais magoados que se deixam transportar dentro de  testemunhos autênticos todos feitos de estalidos crepitantes, sendo eles as marcas de um olhar para trás, de má avença, uma saudade que nada devolve mas que vincam bem um pairar de voo de saudades irremediáveis e uma orfandade dolente que se nos transmite até ao rebentar da emoção pela rotura das lágrimas….
Na verdade, esta obra vem completar um poeta desaparecido há seis décadas, vem, e restitui-lhe com ardorosa veneração o que lhe faltava, celebra-o com luminoso amor e honra-o com justa e rutila bondade humana. E revela-nos facetas absolutamente desconhecidas até há bem pouco tempo pelo ineditismo de aspectos pessoais até cheios de intimidades que se espalham ao longo da obra, toda ela trespassada pela coragem de uma mulher forte e beijada pela alma de um ser humano de eleição.
Sobre intimidades e privacidades Joana Luísa não tem rebuço em nos adentrar aspectos que, tendo sido seus e, sendo agora do domínio publico, permanecem sempre seus, dado que, em dias escaldantes, a água fresca do outro ser humano pode ser a festa sagrada das fontes puras em jorros de cristalinidade que apaziguam as sedes ardentes que Joana deixa transparecer e que também são sedes de outros poetas e leitores-sedes que gretam lábios abertos na espera sofrida do que jamais se alcança …

Nocturno (poema inscrito no livro)

Rendas de Som o mar foi levantando,
que enfeitaram de branco a Noite escura.
Ventos sem fé, puseram mãos nervosas
nos vestidos da Noite e lhos rasgaram.
Anda a noite a gemer pelas devesas…
Chora lágrimas de Astros que humedecem
de fulgores riquíssimos seu manto.
Oh! Que régios farrapos, seus farrapos!

Minha Amante mais alta e mais formosa!
aqui me tens de lábios bem abertos
e rubros e sedentos de teus beijos.
Deixa a minha nudez cobrir teus ombros
e dá-me a glória virgem do teu peito.
E se o Dia chegar, que o dia fique lá fora, ao Sol,
à espera que se acabe a eternidade
desta hora magnífica de noivos.    
Ar. 20-7-946
Sebastião

Este livro, sendo uma viagem pelas interioridades de uma mulher do povo simples das terras sadinas, não deixa de ser ainda uma verdadeira mostra de retratos da sua terra de outras épocas num esboço socioafectivo comovente pela espontaneidade do fluir das prosas e pela imensa ternura que assinala cada página. Assim, Joana Luísa, sem intencionalidade premeditada, faz reviver características culturais, humanas e comportamentais Azeitonenses de um País pré e pós guerra onde um modo de ser poético foi mais do que uma atitude de aceitação, mas sim, uma das formas de expressividade de vários grupos juvenis inconformistas que não aceitavam modelos convencionais mas iam em busca de outros parâmetros líricos de expressão para novas maneiras de intercomunicabilidade na aventura estética de inconformismos criativos. E conseguiram-no!
Sebastião da Gama, neste livro, vai de mão em mão com companheiros pelo braço brando e meigo da meninice e, depois, das juvenílias enamoradas-vai a caminho nas brincadeiras de criança lépida, no ternurento namoro florido de adolescente, vai noivar com Joana  e casar com a Poesia para sempre.
Bendito seja!!!
Daniel Nobre Mendes

Comentários

  1. que meigos,que tristes ,qeue verdadeiros são dnm ,l.da gama e seu namorado!

    aqui fica o meu testenmunho e aplauso do trxto.


    zélia cansado

    ResponderEliminar
  2. como posso adquirir esse livro tão bem analisado por daniel?
    ele faz um relato afetivo interessante sobre tantas coisas tão lindas.
    muito obrigada!


    jenifer nunes


    estado de amapá-- brasil

    ResponderEliminar
  3. Cara Jenifer Nunes,
    Se está interessada em obter o livro, dirija email nesse sentido à Associação Cultural Sebastião da Gama (acsgama@sapo.pt). Obrigado.

    ResponderEliminar
  4. texto espantoso porque a lingua portuguesa ainda traduz sensibilidades e sebastião da gama permanece virgem nas memórias de todos nós!


    catarina de abreu nunes e josias ataíde---- fortaleza, ceará,brasil

    ResponderEliminar

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