Avançar para o conteúdo principal

Sebastião da Gama em "Memorial do Convento", de José Saramago

Todos os docentes que alguma vez leccionaram Memorial do Convento tiveram ocasião de encontrar, nos diversos manuais de 12.º Ano ou em elementos bibliográficos relativos ao famoso romance, longas e minuciosas listas de citações dos variados autores a que o escritor recorreu para pôr em prática o seu peculiar “jogo” intertextual.
Relendo, há escassas semanas, algumas páginas do interessante livro José Saramago nas suas Palavras (Lisboa, Caminho, 2010), constituído por um vasto conjunto de excertos de entrevistas saramaguianas meticulosamente seleccionadas por Fernando Gómez Aguilera, que as agrupou em núcleos temáticos, acompanhando cada um deles de breve, mas cuidada, introdução, deparei, por mero acaso, na página 246, com o seguinte extracto de uma dessas entrevistas concedida pelo nosso Nobel da Literatura a Baptista-Bastos e publicada no jornal Correio do Minho, de Braga, em 12 de Fevereiro de 1983: «[…] se a oportunidade o pede, divirto-me a introduzir nos meus romances palavras, frases, versos que não são meus […]. No Memorial estão assim Fernando Pessoa, José Régio, Nicolau Tolentino, António Vieira, Tomás Pinto Brandão, Camões, até Sebastião da Gama lá está, quase invisível…»
Confesso que, exactamente por ser «quase invisível», nunca me tinha apercebido da inclusão do poeta da Arrábida no rol daqueles que Saramago contemplou, no Memorial, com a prática da intertextualidade.
Como me preparava, então, para reler o romance, tendo em vista reavivar na memória pormenores úteis à preparação das minhas aulas, decidi redobrar a atenção no acto de leitura, com o intuito de tentar descobrir a presença de Sebastião da Gama, propósito este que me entusiasmou e foi coroado de êxito.
Efectivamente, no “capítulo” X do romance, que foca, entre outros aspectos, a doença de D. João V, designada pelos médicos de «melancolia» (p.112) e que o obrigou a retirar-se da corte e a recolher-se a Azeitão, «a ver se com mezinhas e bons ares se cura», pode ler-se o satírico fragmento que se segue:
«D. Maria Ana ficou em Lisboa a rezar e depois foi continuar a reza para Belém. Dizem que vai agastada por não querer D. João V confiar-lhe o governo do Reino, realmente não está bem desconfiar assim um marido de sua mulher, são resistências de ocasião, lá mais para diante será regente a rainha enquanto el-rei se acaba de curar naqueles felizes campos de Azeitão, tendo a assisti-lo os franciscanos da Arrábida, e o marulhar das ondas é o mesmo, a mesma a cor do mar, a maresia o mesmo sortilégio, e o mato cheira como dantes, assim fica o infante D. Francisco sozinho em Lisboa, fazendo corte, e já começa a urdir a trama e a teia, deitando contas à morte do irmão e à sua própria vida,» (p.113).
Ora, o segmento textual que, no parágrafo anterior, assinalámos, com recurso ao itálico, é constituído por quatro versos que Saramago transcreveu, ligeiramente adaptados, de um belo poema de Sebastião da Gama intitulado «Regresso à Montanha» (incluído em Pelo Sonho É Que Vamos):

Regresso
- nem triste nem alegre: receoso…

E o marulhar das ondas é o mesmo…
A mesma, a cor do Mar… A maresia
Tem sobre mim o mesmo sortilégio…
E o mato cheira como dantes… Fala
Comigo como dantes, reza, escuta…
E o perfil da Montanha, como dantes,
Adoça-se no escuro…
E a um canto da Noite, recolhido,
Mudo de tão feliz, o Adolescente…

A escolha do Nobel, que pretendia, decerto, neste exercício de intertextualidade, caracterizar com exactidão a Arrábida, que acabava de mencionar, não podia, no contexto, ter sido mais acertada, porquanto o poeta de «Serra-Mãe» lhe disponibilizava, impregnada de fina sensibilidade e beleza poética, uma das suas composições em que, de forma lapidar, esboça, em traços largos, um retrato fiel da serra em perfeita simbiose com o mar e delineia a profunda intimidade que marcava a sua relação com ela.
Não deixa de ser curioso – diria mesmo inesperado – que um escritor, em geral tão causticamente crítico, como Saramago, tenha elegido, como uma das fontes da sua prática intertextual, Sebastião da Gama, um poeta cuja mundividência se situa, pelo menos aparentemente, nos seus antípodas.
A verdade é que existe um outro Saramago, habitualmente esquecido, aquele que, sobretudo em Viagem a Portugal e em tantas crónicas, para já não falar da sua poesia, destila um envolvente discurso lírico suscitado pela contemplação ou pela recordação de trechos da terra portuguesa, capazes de lhe inspirarem, como a Arrábida a Sebastião da Gama, aquilo a que poderíamos chamar, à falta de melhor designação, uma sentida comunhão com a natureza.
Por muito diferente, e até oposta, que seja a visão do mundo de quaisquer escritores, existe quase sempre, entre eles, um denominador comum, que é a capacidade não só de vibrarem perante a beleza que o universo encerra, mas também de plasmarem essa vibração em palavras imbuídas de sedutora magia.
António Vilhena

Comentários

  1. Muito interessante e sugestivo!

    Onde se pode adquirir o livro vencedor? Culsete?

    Abraço

    Anita Vilar

    ResponderEliminar
  2. Sim, a Culsete é uma hipótese de encontro com "Retrato a Sépia", de Paulo Assim.
    Saudações amigas.

    ResponderEliminar
  3. Excelente e atenta contribuição para a obra do nosso patrono.
    O José já lia Sebastião em 1951?
    Cabe ao nosso poeta que percentagem do "Nobel"?
    aqrosa

    ResponderEliminar

Enviar um comentário

Mensagens populares deste blogue

"Pequeno poema" ou uma evocação do nascimento

"Pequeno poema" ( Aqui e além . Dir: José Ribeiro dos Santos e Mário Neves. Lisboa: nº 3, Dezembro.1945, pg. 14) O dia do nascimento quis perpetuá-lo Sebastião da Gama num dos seus textos poéticos. E assim surgiu “Pequeno Poema”, escrito em 7 de Maio de 1945 e, em Dezembro desse ano, publicado no terceiro número da revista Aqui e além e no seu primeiro livro, Serra Mãe , cuja primeira edição data também desse Dezembro. De tal forma a sua mensagem é forte, seja pela imagem da mãe, seja pela alegria de viver, que este texto aparece não raro nas antologias poéticas, temáticas ou não, como se pode ilustrar através dos seguintes exemplos: Leituras II [Virgílio Couto (org.). Lisboa: Livraria Didáctica, 1948?, pg. 74 (com o título “Quando eu nasci”)], Ser Mãe [Paula Mateus (sel.). Pássaro de Fogo Editora, 2006, pg. 45], A mãe na poesia portuguesa [Albano Martins (sel.). Lisboa: Público, 2006, pg. 310]. (JRR)

"Cantilena", de Sebastião da Gama, cantado por Francisco Fanhais

Com a edição do Público de hoje completa-se a colecção “Canto & Autores” (Levoir Marketing / “Público”), de treze títulos, sendo este volume dedicado a Francisco Fanhais, constituído por booklet assinado por António Pires com um texto resultante de entrevista testemunhal a Fanhais e por um cd com 17 faixas, em que a canção “Cantilena” (letra de Sebastião da Gama e música de Francisco Fanhais) ocupa a sexta posição no alinhamento. Por este cd passam ainda versos de Manuel Alegre, de Sophia de Mello Breyner, de César Pratas e de António Aleixo, entre outros. O poema “Cantilena”, cujo primeiro verso é “Cortaram as asas ao rouxinol”, foi escrito por Sebastião da Gama em 25 de Novembro de 1946 e, logo no ano seguinte, escolhido para o que viria a ser o segundo livro do poeta, Cabo da boa esperança (1947). É um dos poemas clássicos da obra de Sebastião da Gama quando se quer referir a presença dos animais na poesia portuguesa, tal como se pode ver na antologia Os animais na

"Serra-Mãe", o primeiro livro de Sebastião da Gama

O primeiro livro de Sebastião da Gama foi Serra-Mãi (assim mesmo escrito), saído a público em Dezembro de 1945, com desenho de capa de Lino António, obra que muito cuidou e para a qual levou a preceito a selecção dos seus poemas. Nesta altura, Sebastião da Gama, com 21 anos, era ainda estudante no curso de Românicas, na Faculdade de Letras de Lisboa. Tivera uma hipótese de a Livraria Portugália lhe editar o livro, mas, a 24 de Outubro, era-lhe dirigida uma carta, dizando que, naquele momento, não interessavam à editora “as publicações não integradas no plano” editorial, porque havia encargos com cerca de uma centena de originais, já pagos a autores e tradutores, e não havia como “dar vazão” a esse trabalho. A família de Sebastião da Gama assumiu, então, os encargos financeiros advenientes da edição e o livro foi publicado com a chancela da Portugália, enquanto distribuidora. Com obra, dedicada a Alexandre Cardoso, seu tio, assumia o risco de vir a ser o “poeta da Arrábida”, elegendo a