Luís Filipe Lindley Cintra (1925-1991) foi um dos maiores amigos de Sebastião da Gama, tendo partilhado com ele o tempo da Faculdade de Letras e o gosto pela Arrábida e pela escrita. Primeiro leitor de muitos poemas do Poeta da Arrábida, contribuiu amplamente para a divulgação da obra de Sebastião da Gama, colaborando na organização da sua obra póstuma e tendo prefaciado a edição de Serra Mãe em 1957, além de ser autor de alguns artigos na imprensa sobre a obra do poeta azeitonense, tais como: “Carta ao poeta Sebastião da Gama” (Diário Popular, 26.Dez.1945), "Sebastião da Gama: um depoimento" (O Tempo e o Modo, 27, 1965, págs. 463-478) e “Sebastião da Gama e a poesia social” (República, 1967).
A carta que aqui se reproduz, dirigida por Luís Filipe Lindley Cintra a Joana Luísa da Gama uma semana depois da morte do poeta, é um documento de ternura e um testemunho que inicia o caminho da memória de Sebastião da Gama. (JRR)
A carta que aqui se reproduz, dirigida por Luís Filipe Lindley Cintra a Joana Luísa da Gama uma semana depois da morte do poeta, é um documento de ternura e um testemunho que inicia o caminho da memória de Sebastião da Gama. (JRR)
14-2-52
Joana Luísa,
Não venho com esta carta tentar consolar-te. Dores como a tua respeitam-se a acompanham-se. Não se podem consolar. Venho só dizer-te que a Maria Adelaide e eu estamos sempre contigo, que te consideramos nossa irmã como o foi – e continua a ser porque só aparentemente ele não está connosco – o nosso Sebastião. À hora em que escrevo sei que devem estar estar aí a dizer uma missa por ele. Gostava de estar presente. Não me era possível. Mas também aqui penso nele e rezo por ele. Todos os dias temos rezado. Nunca ele esteve tão presente junto de mim.
No Sábado passado, em lugar de dar aulas, fui à Faculdade à hora de uma delas e, com os meus alunos, lembrei o Sebastião. Deus deu-me coragem para ler poemas dele. Depois pediram-me que preparasse um programa para a Rádio Universidade, que deve ser transmitido na quarta-feira que vem. O Dr. Prado Coelho teve a ideia, a que me juntei, de mandar dizer uma missa em nome dos professores e alunos da Faculdade. Será com certeza aos quinze dias.
Eu devo tanto ao Sebastião. Aprendi a ver tanta coisa pelos olhos dele. Sinto-o agora mais do que nunca. Havia qualquer coisa em mim que era tanto dele como minha, talvez mais dele do que minha. Eu sabia ao sentir certas coisas que era com ele que as sentia. E é com ele que as continuarei para sempre a sentir. Eu sei. Mas falta-me qualquer coisa. Joana Luísa, para que te venho entristecer? Perdoa. Perdoa também vir-te já falar num assunto em que constantemente penso. O Sebastião deixou-nos um legado precioso que precisamos de defender, elevar – os poemas. Deixou-os talvez mais a ti e a mim que a mais ninguém. Desculpa eu falar assim mas vi, como tu, nascer a Serra Mãe, tenho os originais todos, ouvi tantos e tantos poemas, mal eles nasceram; sei-os quase de cor. Era preciso agora juntar os poemas de depois do Campo aberto e publicá-los. Joana Luísa, deixa-me colaborar contigo no cumprimento deste dever, sim? Eu trato de tudo quanto disser respeito à edição. Como último abraço, a unir-nos para sempre (lembras-te quando ele escreveu “começou no Mirante dos Frades e não tem fim”?), eu gostava – mas tu dirás se achas bem – de escrever umas palavras, o estudo que ele tantas vezes me pediu sobre a poesia dele e que eu nunca cheguei a escrever, que acompanhariam esses últimos versos. Deixas, Joana Luísa? Eu queria fazer tanta coisa pela memória dele.
Quando tiveres coragem de vir a Lisboa, vem a nossa casa. Está sempre aberta para ti. Os nossos pequeninos esperam-te. Eles podem dar-te um pouco de conforto com aquela alegria que o Sebastião tão bem sabia compreender. Vem, Joana Luísa. Se quiseres, também tens onde ficar. Dizemo-lo do fundo do coração.
Abraça por nós a Mãe e o Pai dele, o Sérgio. Diz-lhes que estamos muito junto da vossa dor.
A ti abraçam-te muito, muito
Não venho com esta carta tentar consolar-te. Dores como a tua respeitam-se a acompanham-se. Não se podem consolar. Venho só dizer-te que a Maria Adelaide e eu estamos sempre contigo, que te consideramos nossa irmã como o foi – e continua a ser porque só aparentemente ele não está connosco – o nosso Sebastião. À hora em que escrevo sei que devem estar estar aí a dizer uma missa por ele. Gostava de estar presente. Não me era possível. Mas também aqui penso nele e rezo por ele. Todos os dias temos rezado. Nunca ele esteve tão presente junto de mim.
No Sábado passado, em lugar de dar aulas, fui à Faculdade à hora de uma delas e, com os meus alunos, lembrei o Sebastião. Deus deu-me coragem para ler poemas dele. Depois pediram-me que preparasse um programa para a Rádio Universidade, que deve ser transmitido na quarta-feira que vem. O Dr. Prado Coelho teve a ideia, a que me juntei, de mandar dizer uma missa em nome dos professores e alunos da Faculdade. Será com certeza aos quinze dias.
Eu devo tanto ao Sebastião. Aprendi a ver tanta coisa pelos olhos dele. Sinto-o agora mais do que nunca. Havia qualquer coisa em mim que era tanto dele como minha, talvez mais dele do que minha. Eu sabia ao sentir certas coisas que era com ele que as sentia. E é com ele que as continuarei para sempre a sentir. Eu sei. Mas falta-me qualquer coisa. Joana Luísa, para que te venho entristecer? Perdoa. Perdoa também vir-te já falar num assunto em que constantemente penso. O Sebastião deixou-nos um legado precioso que precisamos de defender, elevar – os poemas. Deixou-os talvez mais a ti e a mim que a mais ninguém. Desculpa eu falar assim mas vi, como tu, nascer a Serra Mãe, tenho os originais todos, ouvi tantos e tantos poemas, mal eles nasceram; sei-os quase de cor. Era preciso agora juntar os poemas de depois do Campo aberto e publicá-los. Joana Luísa, deixa-me colaborar contigo no cumprimento deste dever, sim? Eu trato de tudo quanto disser respeito à edição. Como último abraço, a unir-nos para sempre (lembras-te quando ele escreveu “começou no Mirante dos Frades e não tem fim”?), eu gostava – mas tu dirás se achas bem – de escrever umas palavras, o estudo que ele tantas vezes me pediu sobre a poesia dele e que eu nunca cheguei a escrever, que acompanhariam esses últimos versos. Deixas, Joana Luísa? Eu queria fazer tanta coisa pela memória dele.
Quando tiveres coragem de vir a Lisboa, vem a nossa casa. Está sempre aberta para ti. Os nossos pequeninos esperam-te. Eles podem dar-te um pouco de conforto com aquela alegria que o Sebastião tão bem sabia compreender. Vem, Joana Luísa. Se quiseres, também tens onde ficar. Dizemo-lo do fundo do coração.
Abraça por nós a Mãe e o Pai dele, o Sérgio. Diz-lhes que estamos muito junto da vossa dor.
A ti abraçam-te muito, muito
Luís Filipe e Maria Adelaide
É mesmo um «documento de ternura»!
ResponderEliminarPor várias razões (só minhas), fiquei comovida.
MCT
Uma pérola autêntica! Uma carta delicios! Senti-me transportada para um mundo a perder-se, um mundo de afectos, um mundo onde os valores mais altos não eram subalternizados pela correria e a falta de tempo, onde a amizade era geniuna e inteira.
ResponderEliminarOdília